Lúcio Gregori fala da regulamentação do transporte como direito social

Foto: PTMG

Pela Constituição Federal, o Estado tem a obrigação de oferecer transporte para a população assim como educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Transporte foi inserido nessa lista apenas em 2015, depois de muita mobilização social. A partir daí, abriu-se o caminho para destinação de recursos e elaboração de políticas públicas para o setor. Em 3 anos, o que foi de fato implementado? Qual o caminho para sua regulamentação efetiva?

Para discutir esse assunto conversamos com Lúcio Gregori, engenheiro e ex-secretário de Transportes da prefeitura de Luiza Erundina (1989-1993), que propôs a tarifa zero na sua gestão. Ele conta como surgiu a proposta da tarifa zero e fala do papel dos movimentos sociais no processo de regulamentação desse direito.

Mobcidades: Quando o senhor foi secretário da Prefeita Luiza Erundina, o senhor propôs a Tarifa Zero. Por que?
Lúcio Gregori: Foram diversas razões. O preço da tarifa e a questão dos transportes coletivos foi um dos carros-chefes da campanha de Erundina. Passado um ano de governo a questão tarifária não tinha uma solução definitiva e os contratos de concessão vencidos desde o governo anterior, de Jânio Quadros, propiciavam um serviço absolutamente inadequado, com veículos superlotados etc. Ao assumir a Secretaria dos Transportes em julho de 1990 verifiquei ainda, que a arrecadação de tarifas consumia 24% de sua receita e que a CMTC da prefeitura, operava mais de cem linhas deficitárias, que lhe haviam sido passadas em benefício das empresas privadas, dentro da lógica dos contratos por concessão. A partir de minha experiência como Secretario de Serviços e Obras do mesmo governo Erundina, ocorreu-me a ideia de usar o sistema de pagamento indireto, como na coleta de lixo. Além de acabar com os 24% de custos da arrecadação, o sistema de pagamento indireto exigiria uma fonte de recursos adequada para concretizá-lo e daí surge a taxa transporte como fonte desses recursos. A taxa transportes era uma proposta de longa data e tinha a característica de transferir o custo do transporte coletivo para o setor que realmente mais desfruta da mobilidade das pessoas ou seja, o chamado “setor produtivo”. Uma proposta que estava em consonância com os princípios de justiça tributária que norteavam o governo de Erundina. Após estudos do setor jurídico da Prefeitura, verificou-se que a taxa transporte, sendo uma nova taxa municipal, precisaria de uma aprovação prévia do Congresso Nacional nos termos da Constituição de 1988. Optou-se então pela reforma baseada sobretudo, no IPTU, imposto que também permite uma progressividade socialmente muito justa. O nome de fantasia Tarifa Zero apareceu quando da coletiva de imprensa de lançamento da nova proposta, dia 28/09/1990 (ver O Estado de S.Paulo 29/09/1990). Em minha fala, em certo momento disse que não se tratava de “ônibus de graça” (o que contém um certo preconceito) mas de ônibus à Tarifa Zero. A campanha pró Tarifa Zero teve o mérito de trazer a discussão sobre transportes urbanos, para o terreno da disputa política que envolve diferentes interesses de classes sociais e a produção e desfrute das cidades. Até então esse era um assunto tido como técnico e a ser resolvido por “especialistas“, quando na verdade esses devem seguir a determinação política da sociedade na resolução e equacionamento dos projetos de mobilidade.

É importante ressaltar que após campanhas publicitárias e inúmeros debates em toda a cidade, a proposta teve aprovação de 68% dos entrevistados com 76% de aprovação da reforma tributária proposta, conforme pesquisa do Instituto Toledo e Associados em dezembro de 1990. Embora sequer votada pela Câmara dos vereadores a proposta da Tarifa Zero permitiu na sequencia, a aprovação da Lei da Municipalização 11.037/91 que transformou os contratos em pagamento por custos operacionais separando o pagamento dos serviços, da tarifa. Era uma proposta de um grupo de trabalho do PT anterior ao governo Erundina e que poderia permitir uma política de subsídios mais eficaz. Implantada em janeiro de 1992, permitiu a ampliação da frota no mesmo ano em mais de 2000 ônibus e melhora geral nos índices de desempenho. O sistema teve então a avaliação de 65% entre ótimo e bom, a melhor avaliação da história até hoje. (ver Folha de São Paulo de 13/06/1999).

Mobcidades: Em consonância com a sua proposta, vários movimentos e lutas sociais surgiram em defesa do direito ao transporte. o que também culminou com a sua inserção na Constituição. A seu ver o que esse processo da PEC 90 significa para que esse direito de fato aconteça?
Lúcio Gregori: A proposta de transportes como direito social de autoria da deputada Luiza Erundina, data de 2011 e estava fadada ficar pelas gavetas do Congresso, não fosse as manifestações de Junho de 2013. Por conta dos protestos que culminaram com a revogação dos reajustes tarifários em mais de cem municípios do país, a deputada teve condições e acelerou o processo de sua aprovação tanto na Câmara como no Senado e sua inclusão na Constituição Federal em setembro de 2015. A existência desse dispositivo Constitucional que é basicamente prescritivo, abre a possibilidade de concretizá-lo e operacionalizá-lo através de sua regulamentação, tal como aconteceu com a Saúde e que resultou no SUS, uma das mais importantes políticas socais do Brasil.

Mobcidades: Apesar de essa inserção já ser uma conquista importante, para que o transporte seja um direito de verdade, é preciso que o dispositivo seja regulamentado. Na opinião do senhor qual o caminho para essa regulamentação? E qual o papel dos movimentos sociais nesse processo?
Lúcio Gregori: A regulamentação do transporte como direito social é essencial para operacionalizá-la tal como se disse na pergunta anterior. Pode-se reivindicar a instituição de uma comissão participativa, constituída por parlamentares e representantes da sociedade civil e movimentos sociais para elaborar proposta de regulamentação. Será importante que os vários movimentos tenham de antemão uma proposta que contenha elementos tanto de formas de operacionalizar o referido direito, bem com de fontes de financiamento para cobrir os custos dele decorrentes. Além disso, a regulamentação deverá prever formas de participação da sociedade civil na gestão desse direito tal como acontece no SUS. Em outras palavras, deve-se criar as condições para a criação de um sistema de uso dos transportes coletivos urbanos como direito efetivo e não apenas público em seu acesso como hoje, mas de uso restrito aos que o pagam mediante tarifa e apenas com algumas gratuidades, em geral fortemente reguladas. Os movimentos sociais é que devem ser o foco gerador dessa discussão e regulamentação. Eu diria que já demora a organização da sociedade civil e movimentos sociais para fazer essa disputa política.

É importante ressaltar que já existem propostas a respeito de tal regulamentação como, por exemplo, as do mobildadebrasil.org, de 2014 e que reúne diversos movimentos sociais. Tais propostas passam fundamentalmente, por constituição de um Fundo Nacional de Financiamento de Sistemas de Transportes Coletivos Urbanos, regramentos e restrições para sua obtenção e aplicação, bem como da instituição de um Código Nacional de Desempenho dos Transportes Coletivos Urbanos, a ser observado para a obtenção desses recursos. A proposta citada faz referência a várias reformas de tributação necessárias para a constituição dessa fonte de financiamento.

Uma palavra final: Diferentemente de outra lutas, a dos transportes coletivos urbanos como direito social efetivo, trata de uma nova conquista e não, da não perda de direitos existentes, o que caracteriza uma outra forma de disputa política.

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