Luiza Erundina revela o que falta para regulamentação do Transporte Público

A deputada federal Luiza Erundina foi autora da Emenda Constitucional que incluiu o Transporte na lista de Direitos Sociais. Na sua gestão como prefeita de São Paulo, de 1989-1993, propôs a Tarifa Zero. Conversamos com a deputada sobre os caminhos para regulamentação desse direito, sobre a proposta da Tarifa Zero e o papel dos movimentos sociais nesse processo.

Mobcidades: Conta pra gente como surgiu a proposta de inserir na Constituição o Transporte como Direito Social.
Luiza Erundina: O que me levou a apresentar a proposta de Emenda Constitucional, em 2011, foi minha experiência em São Paulo como prefeita da cidade. O transporte coletivo, não necessariamente público, era um dos problemas mais graves que a cidade enfrentava. Nós procuramos adotar uma política pública que foi a municipalização do transporte, subsidiando-o. No nosso governo fizemos isso de forma muito intensa, trazendo portanto toda a responsabilidade da gestão do transporte para a cidade, integrando inclusive seus vários modais. Tentamos implantar a Tarifa Zero que era uma forma do Estado responder ao direito social e como tal, tem que ser obrigação dele o acesso a esse direito por parte de cada cidadão e cidadã. Não consegui plenamente como prefeita, eu não tinha maioria na câmara municipal porque eu não fiz concessões de princípios na relação com o legislativo municipal. Tudo bem, você tem uma política de reconhecimento do direito, você procura desenvolver meios para que esse direito seja atendido, mas se não houver uma política pública de financiamento do transporte público, o direito não se realiza. Para subsidiar uma política pública e não prejudicar outras, tem que se gerar novas fontes de financiamento, que só pode ser através dos tributos. Até propusemos a criação de um fundo municipal para financiamento do transporte coletivo através de um aumento, de um plus muito pequeno no IPTU, que é um imposto municipal e que recai sobre proprietário de imóveis. Por ser um imposto direto, é justo que ele seja cobrado principalmente na cidade de orçamento mais forte dentre todas as cidades do país. Em 2015, quando a proposta de emenda foi promulgada como emenda constitucional (Emenda Constitucional 91/2015), a responsabilidade pela operação e funcionamento do transporte por parte dos governos municipais, evidentemente com a participação do governo federal e do governo estadual, se torna ainda mais preemente, uma vez que é um serviço exclusivo da cidade.
A economia de uma cidade, sobretudo de um grande centro urbano, repercute na economia do país e, resolver essa questão, requer juntar os três entes da federação e procurar criar uma política pública de financiamento desse serviço, para que de fato a emenda constitucional tenha eficácia e não fique apenas uma letra morta no texto constitucional. Temos três anos de vigência dessa emenda e até agora não se criou, seja no plano nacional seja no municipal, que diretamente tem prerrogativa por essa função.
O trabalhador que vai e volta ou a pessoa que vai consumir bens e serviços e que usa o transporte coletivo, precisa dele acessível, eficiente e seguro até pra evitar o agravamento do trânsito, o aumento da poluição, sobretudo nas grandes cidades. Mesmo quem não o usa diretamente é beneficiado por esse transporte, como no caso do sistema bancário, dos shoppings centers, dos mercados de uma forma geral, dos prestadores de serviços de toda natureza, pois ele se torna insumo dos seus negócios. Portanto, toda a cidade, todo o país se beneficia do transporte público e como tal, não é justo que o custo desse serviço recaia exclusivamente sobre o usuário direto, que é aquele que usa pessoalmente o serviço. Então essa foi a maior motivação: a função urbana. O transporte como um direito social previsto na Constituição é uma função urbana fundamental para o desenvolvimento das cidades, para o seu funcionamento regular e para a melhoria da qualidade de vida dos que ali vivem e esse serviço é responsabilidade de todos, já que todos se beneficiam direta ou indiretamente dele.

Mobcidades: Por que transporte e não mobilidade?
Luiza Erundina: Porque é uma condição para que a mobilidade seja assegurada. Inclusive tem uma política pública urbana que foi instituida em 2012, por um decreto do governo Dilma, estabelecendo as diretrizes da política pública urbana como um direito social também. Então o transporte é parte dessa política de mobilidade. E a mobilidade também é considerada como um direito e como uma função urbana, para o desenvolvimento das grandes cidades. Portanto, as duas coisas se encontram. O direito constitucional ao transporte coletivo é um direito fundamental do cidadão e da cidadã para assegurar a mobilidade urbana à vida das cidades, ao desenvolvimento, produtividade econômica e qualidade de vida nas cidades. É um serviço fundamental, essencial e civilizatório. Inclusive se quer diminuir o transporte individual porque ele atenta contra a qualidade de vida nas cidades. A infraestrutura de uma cidade sempre é construída a serviço do transporte individual à exemplo dos grandes viadutos, túneis e avenidas. Quem tem acesso a essa insfraestrutura são os carros individuais e em certas vias o ônibus, por exemplo, não transita. Para você garantir o acesso à cidade, no sentido mais amplo do termo “cidade”, como condição para o exercício da cidadania, o transporte é fundamental. Portanto, a mobilidade urbana é fundamental pra isso também. É uma prioridade e está na responsabilidade do Estado propiciar os meios de financiamento público desse serviço e consequentemente do direito à mobilidade urbana.

Mobcidades: Apesar de essa inserção já ser uma conquista importante, para que o transporte seja um direito de verdade, é preciso que o dispositivo seja regulamentado. Na opinião da senhora qual o caminho para essa regulamentação?
Luiza Erundina: Para que um dispositivo da Constituição tenha efetividade, é necessário que ele seja regulamentado por uma lei complementar. Lamentavelmente, grande parte dos dispositivos constitucionais de reconhecimento de direitos de cidadania, ainda não foram regulamentados. Por exemplo, no capítulo 5, que trata da Comunicação Social, temos 5 artigos e apenas um foi regulamentado. Da mesma forma, se não se regulamentar o dispositivo da Constituição que diz respeito ao Transporte como Direito Social, ele fica letra morta. Há três anos a Constituição foi promulgada e até hoje não se criaram as condições, sobretudo de financiamento desse transporte, para que ele não ficasse apenas nas mãos da iniciativa privada. A iniciativa privada visa lucro e o transporte não pode ser objeto de lucro ou mesmo ficar onerando o orçamento público pelos altos subsídios. É necessário reduzir os lucros e o Estado precisa assumir parte dos custos desses serviços. Quando o poder público subsidia, ele subsidia mesmo com a cobrança da tarifa e esse subsídio, ao invés de ir pra saúde, cultura, assistência social, previdência social, está indo para o transporte. Em última instância está se tirando do cidadão o custeio do serviço que serve a todos. Então é necessário exigir do governo federal, do Ministério das Cidades, que encaminhe ao Congresso Nacional uma lei complementar regulamentando esse dispositivo da Constituição Federal.

Mobcidades: E qual o papel dos movimentos sociais nesse processo?
Luiza Erundina: Uma lei só tem eficácia quando os cidadãos e as cidadãs conhecem esse direito e esse dispositivo constitucional e legal e lhe confere esse direito, e lutar por ele.
Quando o cidadão toma conhecimento da existência do dispositivo constitucional, reconhecendo um direito e Estado não adota uma política pública voltada a atender esse direito, cabe a sociedade civil organizada lutar por ele. Toda política pública é o reconhecimento e a efetivação de um direito social. Nós não temos uma política de transporte público. Portanto, o Estado deve às cidades brasileiras, ao povo brasileiro, esse direito fundamental, que é condição para o desenvolvimento urbano, para a qualidade de vida digna a todo cidadão da cidade.
A saúde, a educação, a moradia, que também estão previstos no artigo 6º da constituição, tem uma política pública. Tem inclusive a destinação de recursos públicos previstos obrigatoriamente, compulsoriamente nos orçamentos públicos. Percentual para a saúde, percentual para a educação, percentual para a moradia, está se discutindo inclusive uma PEC para que também o direito à assistência social seja contemplado no orçamento da União como percentual do orçamento do país. O transporte também teria que ser vinculado como política pública e como um direito social ao orçamento da União anual ou plurianual para que ele seja garantido.
Portanto, é importante que cidadania organizada em movimentos, em organizações sociais, tenha nas suas agendas uma pauta voltada para a pressão sobre o Estado, para que ele assuma seu dever de criar políticas que atenda o direito ao transporte e a mobilidade urbana.

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