MPL explica como aplicar a Tarifa Zero no transporte público

A segunda entrevista da série “Transporte como direito social” traz a voz do Movimento Passe Livre (MPL).  Com 13 anos de atuação e presente em várias cidades do Brasil, MPL é um movimento social autônomo que luta para que o transporte seja público e gratuito. Sua atuação política é apartidária e de base popular e uma de suas principais propostas para garantir o acesso da população ao espaço urbano e seus serviços é a Tarifa Zero.

Mobcidades: Em que momento o Movimento Passe Livre passou a defender a Tarifa Zero e por que?
Movimento Passe Livre: O Movimento Passe Livre nasceu com as bandeiras do passe livre estudantil e da luta contra o aumento das tarifas de ônibus. Porém, essas pautas não eram um fim em si mesmas, sendo na verdade um instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como direito para o conjunto da sociedade. Compreendemos o transporte coletivo funcionando fora da iniciativa privada, sob controle público (dos trabalhadores e usuários).

A pauta da tarifa zero foi conhecida pelo MPL a partir de 2006, quando o movimento tomou contato com o Lucio Gregori, que relatou a experiência de tentativa de implementação da tarifa zero em São Paulo, quando foi secretário de transporte no início dos anos 1990. A pauta foi adotada gradativamente pelo movimento, que vinculou o conteúdo da proposta às nossas perspectivas estratégicas. Apesar de só ter sido formalizada na carta de princípios muito depois, a pauta já havia sido nacionalizada pelas ações dos coletivos do movimento e também nas instâncias de articulação nacional.

Essa reivindicação foi uma consequência dos debates e estudos realizados, passando assim a entender o transporte não como mercadoria, mas como direito social de toda população, ampliando assim a visão de ser apenas uma reivindicação de quem está estudando. A pauta do passe livre estudantil foi e é importante pra inserir este debate nas escolas e nas universidades, mas o próprio desenvolvimento desta luta apresentou a necessidade de ampliar o direito de forma universal.

O transporte é um direito que dá acesso a outros direitos básicos, como educação, saúde, cultura e também o direito ao lazer, ao namoro, à visitar a família, etc. e portanto é dever do Estado garanti-lo. Entretanto, quanto se tem um sistema financiado através da tarifa e de contínuos aumentos, isso não acontece.

A lógica da tarifa é uma lógica capitalista liberal que cobra do indivíduo (aquele que não tem recursos para comprar e manter um carro) o uso de um serviço que beneficia toda sociedade. Nosso olhar parte do que o transporte traz de ganho para a coletividade e por isso, seu financiamento deve ser feito por todos que se beneficiam deles. Atualmente, quem mais se beneficia são os ricos. A cidade e os serviços só funcionam porque todos os dias milhares de pessoas se deslocam das periferias para chegar aos locais de trabalho, gastando várias horas que não são remuneradas, em geral recebendo pouco final do mês e cada vez com menos direitos trabalhistas. Os patrões precisam do transporte para que seu mundo continue a funcionar normalmente, sem ele a cidade seria um caos. Ocorre que a tarifa faz com que nós, usuários, paguemos por isso e não eles.

Percebemos que as gratuidades pelas quais lutamos e que são conquistas importantíssimas na vida das pessoas, como estudantes (aqui no DF), desempregados (em alguns municípios), pessoas com deficiência, idosos etc., possuem sua limitações e armadilhas. O passe estudantil, por exemplo, tem sido usado para controle e dominação social, pois os sistemas eletrônicos e burocráticos tem o poder de dizer quem tem direito de usar ou não e de que forma, sem compreender a complexidade e importância que é o transporte, ou mesmo a educação. Na Legislação de Diretrizes e Bases da educação nacional, o artigo primeiro define educação como todos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Ainda assim, aqueles estudantes que utilizam o passe livre para ir a um show ou pra visitar a avó, são julgados como fraudulentos pelo governo e empresários. Esse sistema em que o Estado e as empresas sabem quais linhas e horários que alguém sai de casa e deve chegar em um determinado destino, está sendo cada vez mais aperfeiçoado. Temos por exemplo, a implantação dos sistemas de biometria facial, que além de ser muito caro e cheio de imperfeições, ainda é uma ferramenta a ser utilizada para perseguição e criminalização de movimentos sociais (catracaços, movimento estudantil, etc.). Com a tarifa zero essa dominação não faz sentido, pois todas e todos teriam direito ao transporte. Assim, nem o Estado nem as empresas poderão verificar quem está indo para cada lugar, espionando o cotidiano das pessoas e atacando a privacidade.

Percebemos também que o transporte é essencial para a própria organização popular. Toda ideia coletiva, todo sonho, toda problematização que é social, é feita e difundida a partir de encontros. Em uma cidade feita para segregar, onde o tempo de deslocamento é grande e a tarifa é alta, o encontro se torna difícil, pois ir a uma manifestação, a uma reunião, a uma escola para fazer uma oficina, a uma audiência pública, depende exclusivamente do dinheiro.

Ato contra o aumento das tarifas. Foto: Reprodução na internet

Mobcidades: O transporte como direito social foi inserido na Constituição Federal, mas sabemos para que se torne um direito de fato ainda nos falta um longo caminho. Um dos passos desse caminho é a sua regulamentação. Na opinião do movimento o que precisamos fazer para que isso aconteça?
MPL: Precisamos estimular a organização popular territorialmente no sentido de decidir e demandar do estado o cumprimento de seus próprios projetos de mobilidade, alinhados a vida dessas pessoas e suas necessidades específicas. Toda lei que garante direitos ao povo, só sai do papel se houver pressão e organização popular. Entendemos que esse foi o caminho da criação do SUS, por exemplo. Ou seja, precisa ser algo decidido nacionalmente de baixo pra cima, não de cima pra baixo, como as propostas da Frente Nacional de Prefeitos e empresas de ônibus em municipalizar as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE).

Além disso, como nos outros direitos sociais, é necessário que seja criado um fundo nacional para financiar o transporte público e a tarifa zero. Alguns municípios não tem arrecadação suficiente para dar conta de subsidiar a tarifa zero no transporte. Mas não basta que esse fundo venha de qualquer imposto. Precisa ser um imposto proporcional à renda das pessoas, coisa que a CIDE, por exemplo, não é.

Foto: Reprodução de internet

Mobcidades: Como a garantia do transporte como direito social afeta a vida das mulheres?
MPL: O transporte sendo um direito social, como nós o entendemos, é um transporte coletivo gerido através da participação popular direta. Ou seja, a quantidade de ônibus, os percursos e horários que eles circulam devem ser decididos por aqueles que de fato o utilizam. As mulheres são grande parte do usuários do transporte coletivo e sabem que faz toda diferença para sua segurança horários e trajetos. Hoje, quem controla o transporte coletivo são predominantemente homens, políticos, gestores, empresários, técnicos administrativos.

Entendemos que se o transporte é um direito, ele deve ser garantido inclusive nos horários de menos pico. Hoje em dia muitas cidades funcionam 24h e o transporte com segurança na rua não só é necessário, como também é um avanço no que diz respeito a emancipação feminina, que historicamente tem acessado menos os transportes particulares e poderia ter sua mobilidade otimizada (inclusive para trabalho noturno).

Outra questão é a superlotação, sempre usada como justificativa para uma série de abusos e assédios machistas. Sabemos que a superlotação é de interesse dos empresários, que querem gastar menos, e por isso colocam menos carros que o necessário para circular, levando o máximo possível de pagantes. Quando a lógica muda e o transporte passa a ser financiado de outra forma, a superlotação deixa de ser lucrativa.

Por fim, com o transporte sendo garantido como direito de fato e sua tarifa extinta, grande parte das mulheres que trabalha de forma autônoma ou com precariedade nos direitos trabalhistas teriam uma possibilidade de melhora orçamentária.

Escrever um comentário